O
conceito de organização soberana (ver Estamos
contribuindo para que as associações sejam soberanas?) me faz pensar em
outra questão que tenho refletido bastante com colegas que trabalham com o
desenvolvimento de organizações
comunitárias: qual é o papel ou papéis atuais das associações comunitárias?
Nas
décadas de 1960 a
1980, principalmente, desenvolveram-se os chamados movimentos populares,
alicerçados nas Comunidades Eclesiais de Base, em especial da Igreja Católica e
na Educação Popular, de Paulo Freire. Nas cidades e áreas rurais proliferaram
movimentos por moradia, contra a carestia, direitos humanos, comunicação
popular, saúde, entre muitos outros. O que movia as pessoas era o objetivo que
pretendiam alcançar. Eram informais, não tinham recursos e sabiam que contavam
com a força política de sua união para alcançar melhorias para suas vidas.
Lançavam mão da mobilização, reivindicação, pressão através de diferentes
estratégias.
Um pouco
antes, mas em especial a partir da década de 1980, a cooperação
internacional de países mais ricos passou a investir com somas significativas
de recursos para “contribuir com o
desenvolvimento” de países menos favorecidos. A disponibilidade de recursos
estava atrelada à criação de organizações formais e a mais adequada que foi
encontrada foram as associações. Estas deveriam desenvolver competências
gerenciais, não só no sentido administrativo e financeiro, mas também de
monitoramento e avaliação das ações em vista dos resultados a serem alcançados.
Aos
poucos o meio (recursos financeiros) passou a ser objetivo. Inúmeras
associações comunitárias foram criadas para acessarem os recursos oferecidos.
Organizações criadas para determinada causa, inclusive o apoio ao
desenvolvimento comunitário, passaram a incentivar a criação de associações
para viabilizar os seus projetos. Com a democratização do Brasil, o governo
passou a incentivar também a criação de associações para a descentralização de
recursos e a execução de seus programas.
O que era
opção, aos poucos, tem se tornado condição necessária: na ausência de agências
do INSS, os sindicatos de trabalhadores rurais passaram a receber os pedidos de
aposentadoria, licença maternidade e outros benefícios, deixando de lado cada
vez mais, as bandeiras próprias de uma organização de classe; os assentados,
para receberem recursos do INCRA para moradia e plantio, precisam ter
associações; as comunidades, para receberem os recursos da Bolsa Floresta, do
governo do Amazonas, precisam criar uma associação; moradores de Unidades de
Conservação, para receberem a Concessão de Direito Real de Uso coletiva das
terras que ocupam, precisam ter uma associação.
Não há
mais opção. Para ter acesso a essas e outras políticas públicas, as pessoas são
obrigadas a se organizar em associações, passando por cima do preceito
constitucional de “liberdade de
organização”. Ter liberdade significa não só não ser impedido, como também
não ser obrigado a se associar, o que não tem sido respeitado.
Já ouvi
de organizações que “precisamos muito que
essas organizações se fortaleçam”, porque precisam que elas gerenciem
atividades de seus projetos e não porque as pessoas que vivem nessas
comunidades precisam. Já ouvi, inclusive, de organizações que “apóiam o desenvolvimento de organizações”,
que não desejam um desenvolvimento que leve à autonomia daquelas associações
porque elas deixariam de precisar de “seu
apoio”. Algumas dessas organizações foram criadas a partir de movimentos
sociais, mas ao incentivarem a criação de organizações comunitárias imprimem um
pragmatismo exacerbado, do tipo “associações
comunitárias só servem para trazer dinheiro de projetos”. Perguntei certa
vez para o secretário executivo de uma dessas organizações: “porque nós podemos ter objetivos e as
associações comunitárias só servem para conseguir dinheiro de projetos? Elas
não podem ou não devem lutar por objetivos também?”
Li no
Plano de Gestão de uma Unidade de Conservação no Sul do Amazonas que, para
fortalecer a organização social pretendiam criar associações nas comunidades,
depois de já terem praticamente imposto a criação de uma associação mãe (de todas as comunidades da UC). Por que associação
é a única forma de organização social? Quem pensa assim, desconsidera as
inúmeras formas tradicionais de organização dessas comunidades. Em outra
Unidade de Conservação próxima, há anos atrás, criaram 11 associações. Hoje
apenas uma funciona. Todas as outras estão inadimplentes com os órgãos
governamentais, devendo declarações e outras informações, além de multas em
alguns casos.
Muitas
comunidades têm sido oneradas com a criação de organizações formais, não tem
condições de pagar um contador, não tem habilidade para a gestão financeira e
administrativa e nem foram preparadas para isso pelos “seus criadores”. Estes, ao mesmo tempo, criticam a “extensa burocracia a que as associações
comunitárias são submetidas.”
Muitos
dirigentes de associações estão envolvidos em uma intensa agenda de reuniões,
cursos, oficinas, seminários e outros, que não encontram tempo para o
desenvolvimento das suas atividades econômicas em suas comunidades e nem para
mobilização e articulação dos associados. É impressionante observar que, em
vários casos, as diárias de viagem que recebem para assembleias, ajuda de custo
para cursos e outros, são superiores ao rendimento que conseguiriam com suas
atividades em suas comunidades. Ser liderança está se tornando “uma profissão” vantajosa até mesmo do
ponto de vista econômico, sem contar o prestígio político, dentro e fora de
suas bases.
Muitas
dessas lideranças têm uma facilidade bastante grande, fruto de processos de
formação, para dialogar com dirigentes de outras organizações e com órgãos
governamentais, mas encontram grande dificuldade para dialogar em suas
comunidades, comandar uma reunião, mobilizar seus pares para uma reivindicação
ou mesmo para atividades comunitárias de geração de renda, entre outras. Ouvi
de um colega recentemente que “temos um
time excelente para dialogar politicamente, mas falta preparação para atuar em
suas comunidades.”
Dependentes
de “ajuda” externa, desconsideram as
potencialidades da própria comunidade. Por serem “pouco vantajosas”, deixam em segundo plano ações de diagnóstico,
planejamento e execução de ações de iniciativa da própria comunidade. Freqüentes
em diferentes eventos e, por isso mesmo, pouco presentes em suas bases, são
mais conhecidos fora do que dentro de suas comunidades.
Temos
refletido que não podemos prescindir das habilidades gerenciais, uma vez que
essas organizações querem executar projetos, organizar e gerenciar a produção e
comercialização de produtos agroextrativistas, etc. No entanto, se queremos
realmente contribuir com as organizações sociais, precisamos recuperar o
caráter mobilizador, político e popular dessas organizações. Precisamos
resgatar os escritos, princípios e estratégias da educação popular, idealizados
por Paulo Freire e outras pessoas e organizações que se mantiveram nesse
caminho. Quando for o caso de criar ou manter associações formais, que sejam “devolvidas” aos seus legítimos donos:
os movimentos sociais e populares, de forma soberana.
Lembrando
mais uma vez o Guia Pés Descalços: “Se desenvolvimento diz respeito à mudança ou transformação do
poder, deve haver um conceito que defina o lugar em que esse poder possa ser
mantido com legitimidade e sustentabilidade. As organizações locais e os
movimentos sociais soberanos parecem ser o local óbvio para isso.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário