Tenho sugerido, e cada vez mais
financiadores têm exigido, que os projetos tenham a participação da comunidade,
desde a identificação do problema até a avaliação, passando pela definição da
estratégia para superá-lo, a elaboração, execução, gestão e avaliação. Até
mesmo a observação tem mostrado que projetos impostos ou oferecidos “de paraquedas”
são mal executados e geridos e não dão resultados satisfatórios.
Em seu artigo “A cultura Ramkokamekrá
de apoio aos índios”, publicado no livro Povos indígenas: projetos e
desenvolvimento, pela Contra Capa Livraria, Andreas Friedrich Kowalski, que
trabalhou com esse povo, também conhecido como Canela, relata que “outra constatação
surpreendente foram ruínas de vários projetos que, pelas informações dos
próprios índios, andavam muito bem enquanto eram implantados e cuidados por
técnicos não indígenas. A partir do momento em que ficavam sob a
responsabilidade do grupo, eram extintos rapidamente, sem que alguém pensasse
em como obter efeitos sustentáveis. Assim, já sumiram, por exemplo, roças com
grande diversidade de frutos, um rebanho de gado bovino, uma criação de peixes,
um sistema de canalização para distribuir água na aldeia e um laboratório
odontológico. Hoje, há na ladeia um moinho de arroz fechado, ainda que a
lavoura de arroz tenha crescido e, em Barra do Corda, ao lado da casa dos
estudantes, uma padaria doada por uma igreja, mas logo depois fechada pelos
índios.”
Conta também que “em conversas com
colaboradores indígenas sobre esses casos e sobre como conseguir efeitos
sustentáveis, utilizando os desdobramentos dos projetos para manter a autossuficiência
e autonomia econômica do grupo, muitos de meus interlocutores me surpreenderam
outra vez com a opinião de que a ideia de continuação sustentável, sem dúvida,
é importante, porém pertence à cultura dos ‘brancos’ e, portanto é tarefa de
assistentes técnicos não indígenas. Assim, tornou-se claro que, na opinião
desses índios, os efeitos sustentáveis são uma responsabilidade dos apoiadores,
de acordo com o lema: ‘Como és tu quem sabe, é necessário que fiques e
trabalhes com nós, os Canela’. A ideia em jogo era que os apoiadores
trabalhassem para os Canela ou pagassem salários para que estes continuassem
com as ações do projeto após a sua execução.”
Na conclusão afirma que “na área de apoio
aos índios, os representantes do grupo, ao menos os que conheço, participam
pouco no planejamento dos projetos e contam muito com os patrões não indígenas.
Desde que li esse artigo pela primeira
vez fiquei pensando que, muito mais do que fruto da cultura indígena, que vale
também para as diferentes comunidades tradicionais, o pouco sucesso e
sustentabilidade dos projetos estão relacionados à forma de trabalhar das
organizações governamentais e não governamentais e seus técnicos.
Fábio Vaz Ribeiro de Almeida, tratando
de “O mercado de projetos e a busca pelo protagonismo indígena”, no Guia para a
formação em gestão de projetos indígenas, do Projetos Demonstrativos dos Povos
Indígenas – PDPI, publicado pela Paralelo 15, identifica que “há entre os
projetos apoiados pelo PDPI, inúmeros que contam com a parceria de ONGs
indigenistas com atuação local. Raramente são elas as proponentes dos projetos,
mas a sua importância no arranjo institucional responsável pela gestão do
projeto é muitas vezes central. Apesar da diferença nas formas de trabalhar, a
busca da autonomia aparece de forma unânime nos discursos das ONGs, em seus
textos, nos projetos elaborados e nas conversas com técnicos a ela ligados.
Este discurso está afinado com aquela que as agências financiadoras pretendem
ouvir. É curioso reparar, no entanto, como é difícil que apareçam de forma não
hegemônica (...). Por outro lado, o principal problema associado ao papel das
ONGs na construção da autonomia indígena está na dificuldade de superar alguns
vícios da relação de seus parceiros com ‘o mundo dos brancos’, reificando
algumas vezes o paternalismo e até mesmo o clientelismo que tradicionalmente
orientaram sua relação com este. Jaime Siqueira, em sua tese de doutorado,
mostra claramente como os próprios índios acionam essas relações tradicionais em
proveito próprio, às vezes até manipulando com o seu ‘desconhecimento das
coisas do mundo dos projetos’. Mas o fato é que, muitas vezes, os técnicos ou
dirigentes de ONGs, assim como fazem também técnicos de governo e lideranças
indígenas, se furtam a esclarecer o que seria necessário para uma boa gestão do
projeto, evitando entrar em choque com seus aliados. Essa postura, ao invés de
contribuir para a almejada autonomia, caminha na sua contramão.”
Aqueles que se dedicam de fato ao
desenvolvimento comunitário e à autonomia dos povos indígenas e comunidades
tradicionais podem ter nos projetos uma contribuição para isso. Na conclusão de
seu artigo, Andreas Kowalski, reflete também que: “ Mas se estou certo e se
os Ramkokamekrá realmente protegem a sua cultura da maneira como esbocei, o que
pode ser feito é aumentar a parte do conselho, quer dizer, da intermediação nos
futuros projetos, sempre que for possível e houver condições.”
Com um dos povos indígenas da Amazônia
brasileira que tenho trabalhado há quase um ano e que, inclusive, orientei a
fundação de sua associação em março, facilitei em abril uma oficina sobre
diagnóstico e planejamento participativos. Ficaram de fazer nas aldeias, como
preparação para a oficina seguinte, de elaboração de projetos, mas não o
fizeram. Em julho, definiram entre eles um possível projeto para geração de
renda. Em agosto, em uma assessoria técnica avançamos um pouco mais na
elaboração e eles ficaram de conversar nas 5 aldeias que fazem parte da
associação quais seriam a melhores atividades. Fizeram essas conversas e, neste
mês de outubro, nos reunimos novamente para finalizar o projeto e responder a
um dos editais abertos.
Fiquei surpreendido com a participação
de mais de 60 pessoas em uma atividade programada para a diretoria da
associação e algumas lideranças. Apresentei e expliquei o edital, com o auxílio
de um projetor multimídia. Orientei a elaboração do orçamento para a produção e
comercialização de artesanato e castanha, como haviam decidido, para
verificarmos se estava dentro dos limites de recursos definidos pelo
financiador. Como só seria possível uma das atividades, decidiram pelo
artesanato. Toda essa conversa foi feita em português e traduzida para a língua
indígena para que aqueles que não compreendiam bem o português pudessem também
participar. Como já havia verificado em outras atividade que eles tinham
dificuldade para escrever, me propus a fazer isso, desde que as ideias partissem
deles. A elaboração do projeto foi sendo acompanhada por todos, já que estava
sendo feita projetada com data show. Propostas e decisões também foram feitas
na língua indígena e traduzidas para mim, para que fossem incorporadas ao
projeto. Como o envio do projeto deve ser feito online, os diretores da
associação ficaram de fazer isso. Caso tenham dificuldades com a conexão na
aldeia, me propus a enviar caso precisem.
Ao final reconheceram o projeto como
deles. Tinham claro que uma organização internacional tinha interesse em
investir na melhoria da sua geração de renda e qualidade de vida, mas que
financiaria apenas aquilo que eles não tinham condições de conseguir por conta
própria. Toda a mão de obra para a coleta de materiais na mata, gestão do
projeto e da comercialização será voluntária. A sustentabilidade financeira da
atividade após o final do financiamento será viabilizada pagando aos artesãos o
valor da mão de obra e considerando o investimento em materiais e equipamentos
como capital de giro, que retornará para a associação para iniciar um novo
ciclo de produção e comercialização. Tinham claro que eu apenas ajudei
tecnicamente a elaborar o projeto, mas ele foi feito de acordo com a decisão
deles. Serão os responsáveis pela gestão do projeto e da atividade produtiva,
inclusive porque a minha assessoria é temporária e eles devem “caminhar com as
próprias pernas”. Lembraram que eu havia dito que eles não são "coitadinhos que precisam de ajuda, mas são um povo com grande potencial e que precisa de investimentos." Elegeram uma coordenadora do projeto, que dividirá com a
coordenação da associação a execução e a gestão. Sabem também que não têm garantia
que serão financiados, porque concorrerão com muitos projetos do Brasil a fora e
a sua proposta precisa ser melhor do que muitas outras e talvez tenham que
tentar várias outras vezes. Mas estão torcendo muito para que o seu projeto
seja aprovado e eu também, porque é uma proposta muito boa e, se aprovada,
aposto que não terá “ruínas”.
Que trabalho maravilhoso. Obrigada por me ajudar a conhecer tanta coisa.
ResponderExcluirEu é que agradeço pela sua leitura e comentário.
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