Desde
que comecei a trabalhar com o desenvolvimento de organizações comunitárias e
regionais de povos e comunidades tradicionais, há 15 anos, escuto de lideranças
comunitárias e técnicos de organizações privadas e governamentais que as
associações são burocráticas demais para que indígenas, quilombolas,
agricultores familiares, extrativistas, pescadores e outros possam lidar.
Principalmente indígenas e quem trabalha com eles argumentam que associação é
muito distante de sua cultura e que eles têm dificuldades para entender como
funcionam; cuidar de processos de gestão de recursos que não combinam com as
suas formas tradicionais de lidar com o dinheiro e outros bens e que, ter um
presidente, que pode tomar decisões e assinar documentos sozinho dá a elas um
caráter muito centralizador, principalmente para que tem tradicionalmente
processos mais horizontais de decisão.
Dezenas
de milhares de associações comunitárias, regionais e étnicas foram fundadas no
Brasil, principalmente a partir das décadas de 1980 e 1990. A motivação
principal para a maior parte delas é acessar recursos de projetos. Muitas
também foram motivadas pela necessidade de se organizarem e terem
representatividade, tanto na sociedade civil quanto diante do governo, para ter
apoio e lutar por seus direitos e fazer suas reivindicações.
No
entanto, a grande maioria delas nunca acessou recursos de projetos. Outras
conseguiram o primeiro financiamento, que motivou a sua fundação e nunca mais.
Outras conseguem pequenos financiamentos pontuais. Falta capacitação técnica e
meios para acessar editais, elaborar os projetos e negociar sua contratação,
além de haver muito mais associações apresentando propostas do que recursos para
financiá-las. Uma importante fundação avisa já em seu site que apenas por volta
de 1% das propostas apresentadas conseguem financiamento. Outra recebeu em 2015
mais de 1.500 projetos e só tinha recursos para financiar por volta de 50. E
assim vai.
Não
consigo entender porque seria necessário um povo ou comunidade ter uma
organização formal para ter representatividade política. Não tenho dúvidas que
os órgãos governamentais e, principalmente as organizações privadas, deveriam
reconhecer as inúmeras formas tradicionais de organização neste país
pluricultural e pluriétnico. Algumas iniciativas, na contramão desse
entendimento estreito, têm se mostrado experiências muito interessantes, como o
Parlamento Suruí e o Conselho de Caciques do Oiapoque, já tratados neste blog.
Eles são organizações informais, com um Regimento Interno elaborado de forma
participativa e com grande legitimidade junto àqueles que representam e àqueles
com quem negociam.
Resta
ainda a questão do acesso a recursos que, mesmo cada vez menos disponíveis,
dada a disponibilidade decrescente, principalmente por parte das agências de
cooperação internacional e o aumento do número de associações solicitantes,
ainda têm beneficiado algumas associações. Estas, que podem ser consideradas
privilegiadas, contam com organizações da sociedade civil que as “assessoram”
para a elaboração de projetos, gestão dos recursos, organização das atividades
e elaboração de relatórios financeiros e de atividades. Ou fazem isso
completamente ou redigem a partir das ideias e informações das lideranças, dada
a dificuldade que as mesmas têm para fazer sozinhas por causa do pouco
conhecimento técnico agravado pela pouca escolaridade ou de má qualidade, o que
lamentavelmente é muito comum no Brasil. Tanto as lideranças como os técnicos
são unânimes em afirmar que não seria possível cumprir esses compromissos sem
esse “apoio”. Os financiadores também reconhecem e compreendem isso.
Um
grande esforço em termos de pessoal e recursos tem sido dispendido na busca de
capacitação dos administradores dessas associações para a gestão das mesmas,
através de cursos, oficinas, consultorias e publicações. Mesmo assim, até associações
mais estruturadas e com 20 ou 30 anos de história, caem facilmente na
inadimplência com financiadores e órgãos governamentais sem a ação dessas
organizações.
O
foco de ação de quase ou todas essas associações é a reinvindicação de
políticas públicas, controle social das mesmas e conquista de direitos
assegurados por lei, ou seja, uma atuação política. Algumas se dedicam também a
atividades econômicas sustentáveis, em geral com escala menor do que o
necessário para a sua sustentabilidade financeira e, também nesses casos,
dependentes de assessoria técnica e/ou para gestão.
Há
também o problema da rotatividade dos dirigentes e funcionários, no caso
daquelas que conseguem recursos para ter funcionários. Trocas de diretoria,
muitas vezes por pessoas sem nenhuma experiência administrativa, levam a um
novo processo de capacitação ou a uma crise institucional.
Penso
que, se mesmo depois de duas ou três décadas de tentativas, sem conseguir
progressos significativos e duradouros, essa situação permanece, não está na
hora de pensar novas formas de organização para os povos e comunidades
tradicionais que atendam a seus objetivos e também das organizações que as apoiam
e dos financiadores interessados em sua proteção e bem-estar?
Por
exemplo, se as organizações que apoiam essas associações comunitárias, na
verdade protagonizam a quase totalidade dos processos, porque não voltam a
assumir a captação e gestão dos recursos e a assistência técnica necessária
como faziam antes de se disseminar a ideia de que os povos e comunidades
tradicionais tinham que ser autônomos e protagonistas, com suas próprias
associações, projetos e gestão dos mesmos? Ora, e isso tem acontecido, já que a
presença ativa das organizações que, inclusive estimularam e orientaram a sua
fundação, é permanentemente necessária? Se voltassem a assumir esse papel, as
lideranças comunitárias ficariam livres desse ônus gerencial e disponíveis para
as articulações políticas e reivindicações de seus direitos, que é de fato o
que pretendem fazer.
Acho
até engraçado e, ao mesmo tempo trágico, quando ouço de dirigentes e técnicos
de ONGs, que os índios ou outros, precisam ter seus próprios administradores,
técnicos e até motoristas, para serem autônomos, além de pessoas que demonstram
preocupação quando uma associação indígena contrata um branco para a gestão ou
processos específicos de administração. Alguém questiona se uma ONG “de branco”
tem funcionários indígenas, asiáticos ou negros? Alguém questiona a autonomia
de um empresário por causa da etnia de seus diretores, gerentes ou
funcionários? Alguém é capaz de fazer a manutenção de sua casa, de seu carro,
cuidar da própria saúde sozinho ou apenas com a colaboração dos membros de sua
família? E porque não se questiona a autonomia e protagonismo de quem contrata
pessoas para fazer aquilo que não sabe fazer?
Vejo
que a autonomia e protagonismo não está em saber fazer tudo o que se precisa,
mas em ter em suas mãos o poder de decisão sobre o que é preciso fazer, quando,
de que forma e por quem deverá ser feito.
20
ou 30 anos é bastante tempo e, se as organizações comunitárias e regionais de
povos e comunidades tradicionais, durante esse tempo, se desenvolveram muito
menos que as organizações que as apoiam, para mim fica claro que associação
formal não tem se mostrado uma forma adequada de organização.
Não
vejo que o paradigma de que é preciso ter uma associação para se organizar
continua válido. É preciso “pensar fora da casinha” e criar novos arranjos
institucionais entre os atores para atingir os resultados esperados.
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