Cidadania também é para fazer juntos!

CIDADANIA TAMBÉM É PARA FAZER JUNTOS!

Associação é para fazer juntos. O título desta publicação, lançada pelo IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil, no início de dezembro de 2011, já exprime o que será tratado em seus capítulos: que a criação de uma associação deve ser resultado de um processo coletivo e sua atuação deve ser marcada também pela participação efetiva de seus associados.


É o resultado de 10 anos de trabalho com organizações comunitárias e regionais indígenas, quilombolas, de ribeirinhos, agricultores familiares e outros, aprofundando e atualizando o que já foi publicado anteriormente em Gestão de associações no dia-a-dia.

Este blog nasceu como um espaço para troca de conhecimentos e experiências de quem trabalha para o desenvolvimento de organizações comunitárias e outras.

A partir de 2018 passou a ser também um espaço para troca de ideias e experiências de fortalecimento da cidadania exercida no dia-a-dia, partilhando conhecimento e reflexões, produzindo e disseminando informações, participando de debates, dando sugestões, fazendo denúncias, estimulando a participação de mais pessoas na gestão das cidades onde vivem.

Quem se dispuser a publicar aqui suas reflexões e experiências pode enviar para jose.strabeli@gmail.com. Todas as postagens dos materiais enviados serão identificadas com o crédito de seus autores.

É estimulada a reprodução, publicação e uso dos materiais aqui publicados, desde que não seja para fins comerciais, bastando a citação da fonte.

José Strabeli




sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Associação é a forma mais adequada para a organização de povos e comunidades tradicionais?

Desde que comecei a trabalhar com o desenvolvimento de organizações comunitárias e regionais de povos e comunidades tradicionais, há 15 anos, escuto de lideranças comunitárias e técnicos de organizações privadas e governamentais que as associações são burocráticas demais para que indígenas, quilombolas, agricultores familiares, extrativistas, pescadores e outros possam lidar. Principalmente indígenas e quem trabalha com eles argumentam que associação é muito distante de sua cultura e que eles têm dificuldades para entender como funcionam; cuidar de processos de gestão de recursos que não combinam com as suas formas tradicionais de lidar com o dinheiro e outros bens e que, ter um presidente, que pode tomar decisões e assinar documentos sozinho dá a elas um caráter muito centralizador, principalmente para que tem tradicionalmente processos mais horizontais de decisão.

Dezenas de milhares de associações comunitárias, regionais e étnicas foram fundadas no Brasil, principalmente a partir das décadas de 1980 e 1990. A motivação principal para a maior parte delas é acessar recursos de projetos. Muitas também foram motivadas pela necessidade de se organizarem e terem representatividade, tanto na sociedade civil quanto diante do governo, para ter apoio e lutar por seus direitos e fazer suas reivindicações.

No entanto, a grande maioria delas nunca acessou recursos de projetos. Outras conseguiram o primeiro financiamento, que motivou a sua fundação e nunca mais. Outras conseguem pequenos financiamentos pontuais. Falta capacitação técnica e meios para acessar editais, elaborar os projetos e negociar sua contratação, além de haver muito mais associações apresentando propostas do que recursos para financiá-las. Uma importante fundação avisa já em seu site que apenas por volta de 1% das propostas apresentadas conseguem financiamento. Outra recebeu em 2015 mais de 1.500 projetos e só tinha recursos para financiar por volta de 50. E assim vai.

Não consigo entender porque seria necessário um povo ou comunidade ter uma organização formal para ter representatividade política. Não tenho dúvidas que os órgãos governamentais e, principalmente as organizações privadas, deveriam reconhecer as inúmeras formas tradicionais de organização neste país pluricultural e pluriétnico. Algumas iniciativas, na contramão desse entendimento estreito, têm se mostrado experiências muito interessantes, como o Parlamento Suruí e o Conselho de Caciques do Oiapoque, já tratados neste blog. Eles são organizações informais, com um Regimento Interno elaborado de forma participativa e com grande legitimidade junto àqueles que representam e àqueles com quem negociam.

Resta ainda a questão do acesso a recursos que, mesmo cada vez menos disponíveis, dada a disponibilidade decrescente, principalmente por parte das agências de cooperação internacional e o aumento do número de associações solicitantes, ainda têm beneficiado algumas associações. Estas, que podem ser consideradas privilegiadas, contam com organizações da sociedade civil que as “assessoram” para a elaboração de projetos, gestão dos recursos, organização das atividades e elaboração de relatórios financeiros e de atividades. Ou fazem isso completamente ou redigem a partir das ideias e informações das lideranças, dada a dificuldade que as mesmas têm para fazer sozinhas por causa do pouco conhecimento técnico agravado pela pouca escolaridade ou de má qualidade, o que lamentavelmente é muito comum no Brasil. Tanto as lideranças como os técnicos são unânimes em afirmar que não seria possível cumprir esses compromissos sem esse “apoio”. Os financiadores também reconhecem e compreendem isso.

Um grande esforço em termos de pessoal e recursos tem sido dispendido na busca de capacitação dos administradores dessas associações para a gestão das mesmas, através de cursos, oficinas, consultorias e publicações. Mesmo assim, até associações mais estruturadas e com 20 ou 30 anos de história, caem facilmente na inadimplência com financiadores e órgãos governamentais sem a ação dessas organizações.

O foco de ação de quase ou todas essas associações é a reinvindicação de políticas públicas, controle social das mesmas e conquista de direitos assegurados por lei, ou seja, uma atuação política. Algumas se dedicam também a atividades econômicas sustentáveis, em geral com escala menor do que o necessário para a sua sustentabilidade financeira e, também nesses casos, dependentes de assessoria técnica e/ou para gestão.

Há também o problema da rotatividade dos dirigentes e funcionários, no caso daquelas que conseguem recursos para ter funcionários. Trocas de diretoria, muitas vezes por pessoas sem nenhuma experiência administrativa, levam a um novo processo de capacitação ou a uma crise institucional.

Penso que, se mesmo depois de duas ou três décadas de tentativas, sem conseguir progressos significativos e duradouros, essa situação permanece, não está na hora de pensar novas formas de organização para os povos e comunidades tradicionais que atendam a seus objetivos e também das organizações que as apoiam e dos financiadores interessados em sua proteção e bem-estar?

Por exemplo, se as organizações que apoiam essas associações comunitárias, na verdade protagonizam a quase totalidade dos processos, porque não voltam a assumir a captação e gestão dos recursos e a assistência técnica necessária como faziam antes de se disseminar a ideia de que os povos e comunidades tradicionais tinham que ser autônomos e protagonistas, com suas próprias associações, projetos e gestão dos mesmos? Ora, e isso tem acontecido, já que a presença ativa das organizações que, inclusive estimularam e orientaram a sua fundação, é permanentemente necessária? Se voltassem a assumir esse papel, as lideranças comunitárias ficariam livres desse ônus gerencial e disponíveis para as articulações políticas e reivindicações de seus direitos, que é de fato o que pretendem fazer.

Acho até engraçado e, ao mesmo tempo trágico, quando ouço de dirigentes e técnicos de ONGs, que os índios ou outros, precisam ter seus próprios administradores, técnicos e até motoristas, para serem autônomos, além de pessoas que demonstram preocupação quando uma associação indígena contrata um branco para a gestão ou processos específicos de administração. Alguém questiona se uma ONG “de branco” tem funcionários indígenas, asiáticos ou negros? Alguém questiona a autonomia de um empresário por causa da etnia de seus diretores, gerentes ou funcionários? Alguém é capaz de fazer a manutenção de sua casa, de seu carro, cuidar da própria saúde sozinho ou apenas com a colaboração dos membros de sua família? E porque não se questiona a autonomia e protagonismo de quem contrata pessoas para fazer aquilo que não sabe fazer?

Vejo que a autonomia e protagonismo não está em saber fazer tudo o que se precisa, mas em ter em suas mãos o poder de decisão sobre o que é preciso fazer, quando, de que forma e por quem deverá ser feito.

20 ou 30 anos é bastante tempo e, se as organizações comunitárias e regionais de povos e comunidades tradicionais, durante esse tempo, se desenvolveram muito menos que as organizações que as apoiam, para mim fica claro que associação formal não tem se mostrado uma forma adequada de organização.


Não vejo que o paradigma de que é preciso ter uma associação para se organizar continua válido. É preciso “pensar fora da casinha” e criar novos arranjos institucionais entre os atores para atingir os resultados esperados.