Cidadania também é para fazer juntos!

CIDADANIA TAMBÉM É PARA FAZER JUNTOS!

Associação é para fazer juntos. O título desta publicação, lançada pelo IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil, no início de dezembro de 2011, já exprime o que será tratado em seus capítulos: que a criação de uma associação deve ser resultado de um processo coletivo e sua atuação deve ser marcada também pela participação efetiva de seus associados.


É o resultado de 10 anos de trabalho com organizações comunitárias e regionais indígenas, quilombolas, de ribeirinhos, agricultores familiares e outros, aprofundando e atualizando o que já foi publicado anteriormente em Gestão de associações no dia-a-dia.

Este blog nasceu como um espaço para troca de conhecimentos e experiências de quem trabalha para o desenvolvimento de organizações comunitárias e outras.

A partir de 2018 passou a ser também um espaço para troca de ideias e experiências de fortalecimento da cidadania exercida no dia-a-dia, partilhando conhecimento e reflexões, produzindo e disseminando informações, participando de debates, dando sugestões, fazendo denúncias, estimulando a participação de mais pessoas na gestão das cidades onde vivem.

Quem se dispuser a publicar aqui suas reflexões e experiências pode enviar para jose.strabeli@gmail.com. Todas as postagens dos materiais enviados serão identificadas com o crédito de seus autores.

É estimulada a reprodução, publicação e uso dos materiais aqui publicados, desde que não seja para fins comerciais, bastando a citação da fonte.

José Strabeli




terça-feira, 26 de maio de 2015

Consultorias devem estar inseridas no contexto das comunidades

Em julho de 2014 afirmei em uma das postagens que “As consultorias devem estar inseridas na estratégia de ação da organização” que a contrata e agora quero acrescentar um elemento muito importante: as consultorias precisam também estar inseridas no contexto da comunidade onde as ações são realizadas. Isso não depende só do consultor, mas também da forma como a organização que trabalha com aquela comunidade atua, como se relaciona com ela.

Acredito que não precisaria nem lembrar que a posição de quem chega na comunidade como quem tem as soluções e vai salvá-los de alguma coisa, está completamente fora de questão. Toda comunidade tem uma história, tem saberes, tem desenvolvido atividades econômicas, culturais e outras que a fizeram ser o que são hoje, inclusive com seus problemas, fragilidades a serem superadas e desafios a serem enfrentados. Primeiro é fundamental ouvir muito para conhecer esse contexto para depois começar a pensar em que a organização para a qual trabalhamos pode contribuir no enfrentamento dos seus desafios, superando as suas fragilidades para resolver ou diminuir seus problemas e melhorar a vida coletivamente.

Isso leva tempo? Claro que leva! Uma organização não pode chegar de repente e nem ir embora de repente. As comunidades não funcionam “por produto”. É preciso ter uma proposta de médio, ou melhor ainda, de longo prazo. É preciso ter tempo para estabelecer uma relação de confiança com as lideranças e demais pessoas da comunidade, mostrando que o que se tem para oferecer não é uma atividade pontual que a organização precisa mais da comunidade para executar seus projetos do que a comunidade tem necessidade de receber. Muitas vezes até aceitam isso, por não terem uma alternativa melhor e acreditarem que “alguma coisa é melhor do que nada”, mas isso tem mais a ver com dependência do que com empoderamento e desenvolvimento comunitário.

Esse acúmulo de relações e conhecimentos da organização contratante é fundamental para o sucesso do trabalho. Um consultor é um especialista na sua área, mas conhece pouco ou nada sobre aquela comunidade e precisa aprender para inserir corretamente suas contribuições naquele contexto.

Também é preciso ter paciência, disponibilidade e postura para ouvir quando se trata da identificação de problemas, levantamento de demandas e escolha das alternativas. Então os técnicos da organização e o consultor não têm nada a dizer, já que o verdadeiro saber é o da comunidade? Não, eles têm muito a contribuir quando utilizam seus conhecimentos e técnicas para facilitar esse processo. São muitas as dinâmicas e técnicas de facilitação que nem sempre as comunidades têm acesso ou sabem como utilizar adequadamente. Os técnicos e o consultor, trabalhando juntos, também podem oferecer diferentes alternativas, expor de forma clara e simples as vantagens e desvantagens de cada uma para que a comunidade possa decidir de forma qualificada.

Também no planejamento e execução das atividades a serem realizadas não se pode deixar de lado os conhecimentos, científicos em muitos casos, apesar de não reconhecidos pela academia, desenvolvidos historicamente pelas comunidades. E os técnicos? Ah, eles podem contribuir, e muito, com novas técnicas para enfrentar novos desafios. Esses técnicos, além de desenvolverem as atividades com competência, devem ter a sensibilidade e metodologia necessárias para também transmitir seus conhecimentos e habilidades, para que depois de um período necessário de aprendizado, possam continuar por si próprios.

Desenvolvimento comunitário ou de suas organizações não pode prescindir disso.

Não estou deixando de considerar que os prazos e as condições possíveis para a elaboração dos projetos que vão viabilizar financeiramente essas atividades são, em geral, muito menores do que o tempo necessário para amadurecer as propostas e os processos nas comunidades, nem que os recursos disponíveis são, muitas vezes, menores que o necessário. Os financiadores não teriam também o que aprender? Os recursos dispendidos nas últimas décadas no Brasil, por financiadores nacionais e internacionais, têm tido o seu correspondente resultado e impacto? Se não estão, não cabe também aos financiadores reverem seus critérios e estratégias? Os financiamentos também devem estar inseridos no contexto comunitário e de organizações que realmente atuam para o desenvolvimento comunitário e de suas organizações para a conquista do bem viver.

Tem ainda uma última questão: se as comunidades serão empoderadas e ganharão autonomia, o que as organizações e consultores vão fazer depois? Depende do que elas vão precisar para se desenvolver mais e do que as organizações e consultores estiverem preparados para oferecer. Talvez nem precisem de nada, pelo menos por um tempo. Tenho três filhos, hoje entre 22 e 26 anos, cada vez mais adultos, empoderados e autônomos. Não vou negar que tenho uma certa nostalgia de quando precisavam mais de mim, mas também é evidente o meu orgulho de ter contribuído para que eles sejam o que são hoje. É verdadeiro o ditado popular de que “criamos os filhos para o mundo”. Tenho precisado me reinventar como pai em diferentes momentos o que, admito, não é nada fácil.

As organizações precisam ter a flexibilidade, a sensibilidade e a criatividade para contribuírem com as comunidades para enfrentarem os novos desafios que terão pela frente. E se essas comunidades apoiadas tiverem “aprendido a aprender” e descobrirem sozinhas como continuar sua caminhada, devem ter a capacidade de se reinventar para começar tudo outra vez, em outras comunidades. Assim como os filhos, elas também não são nossas.

terça-feira, 19 de maio de 2015

O que as associações tem a ver com políticas públicas?

Nos dias 06 a 14 de maio facilitei oficinas sobre políticas públicas voltadas para os povos indígenas para dirigentes e lideranças de três associações indígenas do baixo Rio Teles Pires, na divisa dos estados do Mato Grosso e Pará.

Discutindo o conceito de política pública, chegou-se à definição de que “É uma ação do Estado para atender às necessidades e interesses coletivos.” Duas reflexões importantes surgiram a partir daí. A primeira é que política pública não é um favor, mas uma obrigação do Estado, compreendendo não só o Executivo, mas também o Legislativo e o Judiciário. São baseadas nos direitos coletivos estabelecidos. A segunda é que atendem a interesses coletivos de bem-estar da população em geral ou de grupos específicos, mas não a necessidades pessoais, como fornecer utensílios, ferramentas ou outros insumos de uso particular, característico da política indigenista durante muito tempo.

O ciclo de uma política pública começa pela formação da agenda, quando temas de interesse entram na pauta de discussões do governo. Para que isso ocorra, os grupos interessados devem se manifestar e pressionar, tendo em vista que outros grupos também estão fazendo o mesmo e se não o fizerem, os próprios gestores se encarregarão de definir as prioridades a seu modo. Na formulação de políticas são definidos os objetivos, ações, público beneficiário, etc. Aqui é novamente fundamental a manifestação e pressão da sociedade civil organizada para que as suas necessidades sejam contempladas, assim como no estágio posterior da tomada de decisões, quando se fará a escolha entre as diferentes alternativas apresentadas. A participação não termina com a publicação em lei, decreto ou outro dispositivo legal instituindo a política. Durante a implementação a participação na execução e monitoramento, é fundamental, em especial com uma atuação qualificada nas instâncias de controle social, o que também deve ocorrer durante a avaliação.

E o que a associação tem a ver com isso? Segundo os participantes de uma das oficinas, As políticas públicas são obrigação do governo e é também papel da associação cobrar a execução adequada dessas políticas.”

A base do reconhecimento nacional dos direitos indígenas está na Constituição Brasileira, em especial em seus artigos 231 e 232. Também são muito importantes os preceitos estabelecidos na Convencão nº 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT. Há quem questione se o governo brasileiro deve obedecer a um tratado internacional. Para dirimir qualquer dúvida, esta convenção foi ratificada pelo legislativo brasileiro através do Decreto Legislativo 143, de 2002 e pelo Decreto 5.051, de 2004 que, em seu artigo 1º, estabelece que “A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989, apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém.”

Muitos indígenas, em especial os mais velhos, lembram com saudades do tempo em que a Fundação Nacional do Índios – Funai supria suas necessidades por roupas, ferramentas, utensílios de cozinha, material de pesca e de caça. Alguns chegam a dizer que “sua antiga mãe os deixou órfãos”. Na verdade, o foco da atuação do órgão indigenista estatal está na proteção territorial e na promoção do desenvolvimento sustentável. Ou seja, “a mãe não abandonou seus filhos, mas reconhece que devem andar por suas próprias pernas”. Depois de ter viabilizado o reconhecimento, demarcação e homologação de boa parte das terras indígenas no Brasil, cabe agora oferecer condições para que os povos indígenas possam utilizar de forma sustentável os recursos naturais de suas terras para viverem bem nelas, atendendo às suas necessidades. É preciso que as organizações indígenas, formais e informais, cobrem da Funai a efetiva realização das ações que estão a seu encargo. Foram estimulados a participarem de forma qualificada dos Comitês Regionais, canais de controle social em que os indígenas têm participação paritária.

Desde 1991 as ações relativas à saúde e educação deixaram de ser executadas pela Funai e passaram aos ministérios da Saúde e Educação. Tanto nos Conselhos Distritais de Saúde Indígena quanto nos Territórios Etnoeducacionais, os índios têm participação garantida em lei, o que não tem sido aproveitado adequadamente pelos povos participantes das oficinas.

Foi discutido que, além das manifestações promovidas pelo movimento indígena, esses espaços institucionais de controle social devem ser aproveitados ao máximo de seu potencial. Os representantes devem ser escolhidos democraticamente; devem ser qualificados para de fato intervirem e devem manter diálogo constante com as comunidades que representa, de forma a expressarem a sua vontade e informar sobre os resultados. Não há representação de fato sem esse diálogo.

Quando se trata de representação em órgãos nacionais como a Comissão Nacional de Política Indigenista, não dá para pensar que os representantes de regiões como a Amazônia, conversem em cada aldeia. O movimento indígena deve se organizar em nível local, microrregional e estadual para que o diálogo seja viabilizado.

Um dos participantes comentou ressentido que no último Acampamento Terra Livre, em Brasília, quando o governo queria conversar chamava apenas lideranças da APIB, COIAB e outras organizações regionais. Foi ponderado que o governo não pode chamar a todos. Quando quer conversar com os industriais, chama a Confederação Nacional da Indústria – CNI; quando quer conversar com os fazendeiros, chama a Confederação Nacional da Agricultura – CNA e os industriais ou os fazendeiros não acham isso ruim, porque se sentem bem representados. Por que os indígenas não se sentem bem representados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil ou por suas organizações regionais? Isso não é responsabilidade do governo, mas do próprio movimento indígena, que deve fortalecer sua organização e representação.

Com a participação social o interesse público passa a ser definido por coletividades que colocam em debate suas demandas determinando com a sua representatividade e capacidade de pressão aos gestores públicos o maior ou menor atendimento de suas reivindicações. As Políticas Públicas são o resultado da competição entre os diversos grupos ou segmentos da sociedade que buscam defender e garantir os seus interesses.

O Estado brasileiro tende a uma burocratização e a uma disseminação de instâncias de consulta que, muitas vezes inibe a execução prática de suas políticas. Estão em curso encontros locais e regionais que antecedem à realização da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista. O mesmo deve acontecer no próximo ano para a realização da 1ª Conferência Nacional da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas - PNGATI. Acontece que os temas são em grande parte similares:


Eixos Temáticos da Conferência Nacional de Política Indigenista
Eixos da PNGATI
1. Territorialidade e o direito territorial dos povos indígenas;
Eixo 1 - proteção territorial e dos recursos naturais:
2. Autodeterminação, participação social e o direito à consulta;
Eixo 2 - governança e participação indígena:

Eixo 3 - áreas protegidas, unidades de conservação e terras indígenas:

Eixo 4 - prevenção e recuperação de danos ambientais:
3. Desenvolvimento sustentável de terras e dos povos indígenas;
Eixo 5 - uso sustentável de recursos naturais e iniciativas produtivas indígenas:
5. Direitos individuais e coletivos dos povos indígenas; e
Eixo 6 - propriedade intelectual e patrimônio genético:

Eixo 7 - capacitação, formação, intercâmbio e educação ambiental:
4. Diversidade cultural e pluralidade étnica no Brasil; e 

6. Direito à Memória e à Verdade


Alguém pode me explicar porque passaremos de março a novembro deste ano mobilizando esforços para a 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista e depois o próximo ano para a 1ª Conferência Nacional da PNGATI, se os temas são em grande parte coincidentes? Como não estão contempladas em nenhuma das duas as políticas públicas de Saúde e Educação para os povos indígenas, isso significa que as conferências nacionais de Saúde e Educação continuarão a acontecer separadamente? Mas a ideia da Conferência Nacional de Política Indigenista não é articular as políticas públicas voltadas para os povos indígenas? Se em um ano terá a conferência nacional de política indigenista, no outro a da PNGATI, no outro a de saúde e no outro a de educação, sobrará tempo para a execução? Será que é maldade minha pensar que a ideia do governo é mesmo ficarmos tão ocupados com conferências que não teremos tempo de cobrar execução nenhuma, acreditando (ingenuamente?) que alguma coisa está acontecendo?

Para quem possa se perguntar qual é, então, a minha proposta: que haja apenas uma Conferência Nacional de Política Indigenista, que contemple todas as políticas voltadas para os povos indígenas, a ser realizada a cada 5 anos; que o Conselho Nacional de Política Indigenista, a substituir a CNPI, seja desencalhado no Congresso e criado, para se reunir a cada 6 meses a fim de monitorar a execução e caso ela não ocorra adequadamente, que o Ministério Público Federal seja acionado e, se necessário, que os 900 mil indígenas e mais todos os apoiadores de sua causa vão às ruas exigir do governo o cumprimento da lei.

Um colega comentou que isso é tão simples que seja a ser assombroso. Tenho uma admiração especial pelas coisas simples e óbvias. Lembrando dos idos dos anos 1970 e 1980, chego a pensar que são revolucionárias. Um companheiro de trabalho, há muitos anos, dizia que "o rio, quando é pequeno, faz muitas curvas para parecer que é grande...". Precisamos fugir disso, não é?

As lideranças indígenas com quem conversei avaliaram que as políticas públicas para os povos indígenas, conforme estão formuladas, são muito boas. O que falta é a execução conforme está prescrito...