Recentemente tomei conhecimento do
conceito de organização
soberana através do Guia Pés
Descalços - para trabalhar com organizações e mudança social,
produzido em 2009 pelo Coletivo Pés Descalços (www.barefootguide.org) e traduzido
para o português pelo Instituto Fonte (www.fonte.org.br).
Nos dois sites o guia está disponível para download (no primeiro em inglês e no
segundo em português) sob a licença Creative Commons Attribution-Non-Commercial-
Share Alike 3.0 Unported License: pode ser utilizado, reproduzido e
distribuído, desde que não seja com fins comerciais.
Segundo
o texto, uma
organização soberana é uma expressão autêntica da vontade e da voz dos seus
próprios constituintes, possui uma habilidade coletiva de pautar suas ações de
acordo com os seus próprios princípios, valores e estratégias, tendo a coragem
de se manter fiel a eles.
Passo a reproduzir abaixo alguns
trechos para estimular a nossa reflexão, em especial sobre o trabalho de
desenvolvimento organizacional que temos desenvolvido:
Quando pessoas comuns são capazes de criar, unir e fortalecer as
suas próprias organizações, e por meio delas dar voz e agir em prol do que
pensam, sentem e querem, elas adquirem mais poder sobre as escolhas e decisões
que afetam suas vidas.
A palavra soberania é bastante utilizada por organizações de
pequenos produtores rurais e profissionais do ramo quando eles falam de
soberania alimentar ou de soberania de sementes como um direito a
autossuficiência, à produção e propriedade local, à tomada de decisões
conscientes e de livre escolha, e não sujeitas às vontades e caprichos dos que
estão fora e que podem procurar controlar ou explorar seu trabalho.
Soberania é um termo particularmente poderoso quando aplicado às
organizações, por trazer para esse âmbito essas mesmas qualidades autênticas,
essa resiliência adquirida por si própria, essa identidade construída de dentro
para fora, essa ideia de uma organização como a expressão da vontade dos seus
próprios constituintes. Deve ficar claro que os direitos, inclusive o da
soberania alimentar, só podem existir se estiverem enraizados em organizações
fortes e soberanas.
Alguns dos principais aspectos da identidade de uma organização ou
de um movimento soberano:
·
Essa organização se esforça para
conhecer e trabalhar a partir da sua própria intenção. Ela funciona “a partir
de” e “com” princípios e valores claros, tendo a coragem de se manter fiel a
eles;
·
É uma expressão autêntica da vontade e
da voz dos seus próprios constituintes. Ela pode prestar serviços, mas não se
presta a servir aos propósitos de outra organização e, embora possa aceitar
financiamento, não é um veículo de desenvolvimento dos projetos financiados
pelas agências de fora;
·
Uma organização soberana é
culturalmente e estruturalmente única: não um clone de algumas “melhores
práticas” de um modelo externo;
·
Uma organização soberana é
politicamente consciente, conhece seus direitos e responsabilidades e
compreende as relações de poder de que faz parte;
·
Uma organização soberana é capaz de
cooperar e trabalhar com colegas e parceiros, sem perder sua identidade.
Soberania não denota um comportamento isolado, embora possa haver fases de
independência, de desenvolvimento interno e de busca pela própria identidade,
antes de se abrir para a colaboração;
·
Soberania é tanto uma qualidade,
quanto um processo de aprendizagem contínua. A capacidade de aprender e de se
adaptar vai determinar a sua soberania em um mundo mutante e volátil. Portanto,
vai determinar o crescimento de sua eficácia. Uma organização soberana aprende
com muitas e variadas fontes, principalmente a partir de sua própria
experiência, mas também por meio de suas diversas relações horizontais de
aprendizagem.
Soberania é tanto uma qualidade organizacional a ser desenvolvida,
como um direito a ser respeitado e defendido. Se desenvolvimento diz respeito à
mudança ou transformação do poder, deve haver um conceito que defina o lugar em
que esse poder possa ser mantido com legitimidade e sustentabilidade. As
organizações locais e os movimentos sociais soberanos parecem ser o local óbvio
para isso.
As tentativas de importar modelos de organização têm se mostrado
propensas a matar as iniciativas locais e a falhar por não conseguir fazer com
que as pessoas se apropriem desses modelos.
Testemunhamos organizações comunitárias, movimentos e organizações
locais buscando continuamente se realinhar para conseguir financiamento e,
nesse esforço, vão adaptando o seu trabalho, a sua linguagem, a sua estrutura,
ou seja, toda a sua vida, aos modelos instituídos pelos financiamentos de
projetos de curto prazo e seus restritos ciclos de projetos. As organizações
locais acabam sendo prestadoras de serviço dos financiadores e do governo, para
que estes alcancem os objetivos dos seus projetos que, na realidade, foram
externamente formulados, contando com alguns poucos processos participativos
que possam trazer um sabor local. E tudo isso, ainda, apoiado por organizações
sociais e consultores profissionais, que também estão competindo por
financiamento e pela prestação de contas feita a partir dessas medidas
externas. Soberania é algo difícil de alcançar.
No entanto, a situação está longe de ser desesperadora. Existem
organizações e movimentos de soberania em todos os continentes resistindo a
esta tendência, muitas vezes apoiados por financiadores e organizações sociais
com uma abordagem de desenvolvimento diferenciada. O setor social precisa
procurá-los e aprender com eles. Existem muitas iniciativas, programas e
projetos que são muito promissores, desde que possam se ajustar ou se
transformar no sentido de integrar uma abordagem mais organizacional.
Os profissionais de desenvolvimento, incluindo os financiadores,
devem prestar mais atenção ao conceito de organização em si e também à prática
de facilitar o desenvolvimento de organizações locais e de movimentos sociais
autênticos e soberanos. Pode haver um crescente corpo de profissionais de
desenvolvimento organizacional trazendo essa abordagem de desenvolvimento, mas
acreditamos que isso precisa ser aprendido por mais gente e se tornar o foco da
prática do setor de desenvolvimento social como um todo e não apenas em uma
parte deste segmento.
É necessário olhar com calma para aquilo que está vivo nas
comunidades, o que é autêntico, o que tem potencial, acompanhado de um profundo
respeito pelo que é local e nativo e de uma prática sutil que possa dar um
suporte bem pensado e cuidadoso onde for preciso. Isso também exige a presença
de facilitadores e financiadores que estejam trabalhando em sua própria
soberania, observando seus propósitos e valores derivados das necessidades e
direitos das pessoas e organizações que eles escolheram apoiar.
Se você me der um peixe,
Você terá me alimentado por um dia.
Se você me ensinar a pescar,
Então você terá me alimentado
Até que o rio esteja contaminado
Ou sua margem tenha sido ocupada pelo desenvolvimento.
Mas se você me ensinar a me organizar,
Então, qualquer que seja o desafio,
Eu poderei me unir a meus pares
E, juntos,
Inventaremos nossa própria solução.