Escrito “a quatro mãos” com
Patrícia Andrade Machado
O Brasil tem, desde o início da
ocupação europeia, um histórico de discriminação, inicialmente com relação aos
índios, que não correspondiam aos padrões europeus de uso dos recursos
naturais, formas de organização e cultura, depois com os negros, cuja
escravização viabilizou economicamente a colonização e quase todo o período
imperial e ao longo de cinco séculos com todos os povos e comunidades
tradicionais, além dos pobres, das mulheres e tantos outros. Não é só no
Brasil, claro, mas isso não justifica.
É uma pena, porque uma das grandes
riquezas do país é a diversidade social, cultural e econômica que esses povos e
comunidades oferecem a todos nós.
Como reação a essa discriminação, nas
últimas décadas tem crescido um movimento de protagonismo e empoderamento dos
negros, mulheres, comunidades da periferia das cidades, indígenas, quilombolas,
ribeirinhos, pescadores artesanais entre outros. Organizações da sociedade
civil têm incentivado esse movimento e esse discurso tem sido apropriado por
lideranças desses povos e comunidades.
Fico às vezes pensando se esse é um
bom caminho. Protagonista é o primeiro lutador ou competidor, na raiz latina do
termo, “protos” – principal, primeiro, e de “agonistes” – lutador, competidor.
É, mais contemporaneamente, o personagem principal de uma peça de teatro, filme
ou novela. Tenho ouvido falar muito do protagonismo indígena nas aldeias e com
as associações com quem tenho trabalhado. E, quando trabalhei com associações
de mulheres indígenas, elas é que queriam ser protagonistas. Também falam do
protagonismo dos negros e aí por diante. Será possível todos serem os primeiros
ou principais? Será que tem gente e organizações “vendendo o que não podem
entregar”?
Empoderamento, uma tradução da
expressão em inglês, empowerment, significa, como já publicado neste blog em
janeiro de 2016, uma ação coletiva desenvolvida pelos
indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de
consciência social dos direitos sociais. Essa consciência ultrapassa a tomada
de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma realidade em que se
encontra. O empoderamento possibilita a aquisição da emancipação individual e
também da consciência coletiva necessária para a superação da dependência
social e dominação política. O empoderamento devolve poder e dignidade a quem
desejar o estatuto de cidadania, e principalmente a liberdade de decidir e
controlar seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro. No entanto, na prática, esse conceito tem sido
entendido mais como adquirir ou atribuir poder a alguém. Poder é o direito de deliberar, agir, mandar e,
dependendo do contexto, exercer sua autoridade, soberania, a posse de um
domínio, da influência ou da força.
Se temos no país uma grande
diversidade de histórias, culturas, organizações, com suas formas próprias de
relação com a natureza e uso dos recursos naturais, não deveríamos todos
direcionar nossos esforços para o “bem viver” de todas?
Se discriminar é distinguir, separar, afastar, não será também discriminação quando destacamos
que determinado grupo, comunidade ou povo deve ter protagonismo ou
empoderamento? Vamos considerar uma região onde convivem de alguma maneira
mulheres e homens, negros, índios e brancos, por exemplo. Se cada um deles for
estimulado a ser o protagonista, o principal e a ter o poder, ser empoderado,
não estaria sendo criada uma disputa entre eles ao invés de estimular a luta
solidária pelos direitos de todos?
Há quem fale em “discriminação positiva”, quando são tomadas
medidas que favorecem os que têm sido discriminados. Será mesmo possível que alguma discriminação seja
positiva? Discriminar é o melhor caminho para acabar com a discriminação?
Dada a sua diversidade e às relações
históricas que tem feito do Brasil o que ele é, a questão não é tanto étnica,
de gênero, faixa etária ou outra, mas dos direitos. Todos têm o direito de ter os seus direitos
conquistados e garantidos.
No final do ano passado, vi em um
programa de televisão o relato da experiência de mulheres do Vale do
Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais. Região de clima semiárido, que oferece
condições bastante difíceis para as famílias, os maridos e filhos adultos
migram temporariamente para outras regiões do Brasil onde encontram trabalho,
deixando suas esposas e mães. Estas vivenciam condições difíceis para se manter
até o retorno dos maridos e filhos.
Detentoras de uma rica arte em
cerâmica, essas mulheres foram estimuladas a produzir e comercializar seus
produtos como forma de geração de renda para melhorar suas condições de vida
enquanto os homens da família buscavam renda com seu trabalho em outras
regiões. Também abriram as suas casas para receber turistas que, além de
conhecer seus produtos artesanais, passaram a conhecer também seu modo de vida,
culinária, etc. “O dinheiro levado pelos visitantes
impacta toda a comunidade, muito além das artesãs. Ele circula na mão de quem
oferece a hospedagem, cozinha o almoço, assa o bolo para o café da tarde, faz
os doces para a sobremesa e assim por diante”. Daí deram origem ao conceito de “empodimento”, uma
versão mineira do empoderamento, com o foco em “nóis pode”.
A tomada de consciência, levada à
prática, de que “nóis pode” ter nossos saberes e habilidades reconhecidos e
valorizados; “nóis pode” trabalhar juntos, gerar renda e melhorar nossas
condições de vida; “nóis pode” conquistar e garantir os nossos direitos, gera
um grande ganho de liberdade e promoção da dignidade de todos os envolvidos e
ninguém se coloca à frente nem exclui ninguém. Pelo contrário, agrega pessoas e
organizações que queiram somar e indica um caminho alternativo e possível que
pode ser disseminado para outras comunidades, formando uma rede capaz de tornar
o Brasil um lugar do “bem viver” para todos nós. Desde então passei a pensar
que empodimento parece bem melhor do que protagonismo ou empoderamento.