Cidadania também é para fazer juntos!

CIDADANIA TAMBÉM É PARA FAZER JUNTOS!

Associação é para fazer juntos. O título desta publicação, lançada pelo IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil, no início de dezembro de 2011, já exprime o que será tratado em seus capítulos: que a criação de uma associação deve ser resultado de um processo coletivo e sua atuação deve ser marcada também pela participação efetiva de seus associados.


É o resultado de 10 anos de trabalho com organizações comunitárias e regionais indígenas, quilombolas, de ribeirinhos, agricultores familiares e outros, aprofundando e atualizando o que já foi publicado anteriormente em Gestão de associações no dia-a-dia.

Este blog nasceu como um espaço para troca de conhecimentos e experiências de quem trabalha para o desenvolvimento de organizações comunitárias e outras.

A partir de 2018 passou a ser também um espaço para troca de ideias e experiências de fortalecimento da cidadania exercida no dia-a-dia, partilhando conhecimento e reflexões, produzindo e disseminando informações, participando de debates, dando sugestões, fazendo denúncias, estimulando a participação de mais pessoas na gestão das cidades onde vivem.

Quem se dispuser a publicar aqui suas reflexões e experiências pode enviar para jose.strabeli@gmail.com. Todas as postagens dos materiais enviados serão identificadas com o crédito de seus autores.

É estimulada a reprodução, publicação e uso dos materiais aqui publicados, desde que não seja para fins comerciais, bastando a citação da fonte.

José Strabeli




quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Não existem milagres para facilitar o desenvolvimento comunitário e de suas organizações

É preciso e está mais do que na hora de consultores, técnicos, suas organizações públicas e privadas, além de financiadores se convencerem definitivamente disso.

Durante uma entrevista rápida e informal a uma pessoa a quem fui entregar o meu currículo, por indicação de uma amiga comum, foi comentado: “Ela me disse que você faz até chover.” Achei isso lisonjeiro e um tanto engraçado. Respondi que a nossa amiga era muito generosa comigo. Eu não faço milagres nem mágicas. Apenas me dedico ao desenvolvimento comunitário e de suas organizações, porque gosto muito desse trabalho, e procuro fazer o melhor consigo.

Ainda hoje é frequentemente vendida a ideia para as comunidades de que se fundarem uma associação receberão muito dinheiro de projetos. Já foi tratado em postagens anteriores neste blog que “A ‘corrida do ouro’ se mostrou enganosa para a maioria das associações que foram criadas para isso. Muitas delas nunca conseguiram ter um projeto aprovado e outras tantas tiveram um ou dois e depois não mais. Ao mesmo tempo, sem condições de pagar um contador, com pouca ou nenhuma habilidade para a gestão financeira e administrativa e sem terem sido preparadas para isso pelos ‘seus criadores’, as associações ficam inoperantes e na inadimplência. Isso sem falar daquelas que, sem o devido preparo, assumiram projetos de grande porte, não executaram corretamente as atividades e o orçamento e, impossibilitadas de prestar contas ou tendo a mesma rejeitada pelo financiador, foram deixadas de lado ou tiveram seus dirigentes responsabilizados judicialmente.”

Milagres e mágicas também estão no imaginário de muitos técnicos: A ideia da associação como panaceia cria expectativas que vão muito além de suas possibilidades. É como se uma associação tivesse vida própria e resolvesse por si só os problemas sem depender daqueles que fazem parte dela. Uma das motivações que já ouvi é que ‘a comunidade é desorganizada. Com a associação vai se organizar melhor’”. Ora, a organização comunitária é a base para a organização da associação. Se a comunidade não está bem organizada é preciso que seja feito um trabalho de fortalecimento comunitário para que se organize melhor. Só depois disso é possível pensar em fundar uma associação, se houver a necessidade de uma organização formal para atingir os objetivos a que a comunidade se propõe. Caso contrário, as fragilidades da organização comunitária se refletirão também na associação.

Já ouvi também que “há conflitos e disputa de liderança. Uma associação ajudará a resolver isso”. Sendo uma organização da comunidade, integrada e dirigida pelas mesmas pessoas, os conflitos e disputas de poder irão para a associação também. Poderão até mesmo ficar mais acirrados, uma vez que seus dirigentes terão um 'poder legal', conferido pela organização formal. Os conflitos poderão também crescer na proporção da disponibilidade de recursos, que levam à distribuição de benefícios, além da contratação de pessoas com salários ou ajuda de custo.

“Como técnico trabalhando com aquela comunidade sou muito demandado a resolver problemas burocráticos ou políticos dela. São muito dependentes. Com uma associação terão mais autonomia.” Respondi que era um grande engano. Autonomia se conquista no dia a dia. Os técnicos têm o grande papel de facilitar esse processo. Ir fazendo junto e cada vez mais ceder espaço até que as capacidades necessárias sejam desenvolvidas e as pessoas consigam fazer as coisas sozinhas. Esse trabalho educativo jamais será feito “magicamente ou milagrosamente” pela simples criação de uma organização formal. “O que vai acontecer é que você vai arrumar mais demandas, para resolver as questões burocráticas e outras da associação.”

Recentemente recebi a seguinte mensagem: “Olá, estamos criando uma associação em minha comunidade e seu blog vem sendo de bastante ajuda para a nossa discussão. Este ponto especificamente é um dos mais problemáticos, tendo em vista que as organizações anteriores existentes por aqui fracassaram pelo caráter centralizador dos presidentes e pela cultura dos associados de que o presidente deve arcar com todas as obrigações da entidade.
Por essa razão, estamos propondo um modelo de administração horizontal, sem a figura do presidente (um Conselho Executivo com 11 membros). No entanto, embora não haja um impedimento legal para esse modelo, encontramos algumas dificuldades práticas, que vão das dúvidas em relação à representação institucional da entidade até à resistência do próprio cartório em realizar o registro de um estatuto que, ao invés de ser assinado por um presidente, é assinado por "Membros do Conselho Executivo". Enfim, em face dessas dificuldades, que soluções poderíamos adotar?”

Respondi que “Uma associação precisa ter um representante legal, necessariamente UMA pessoa física. Nas associações que adotam um Conselho Diretor ou Conselho Executivo, os membros do conselho elege entre si uma pessoa que terá o título de presidente do conselho ou outro que se queira dar e este assinará os documentos legais da associação, tanto diante dos órgãos governamentais como contratos, convênios, etc. Não tem como escapar disso.

“É importante termos claro que uma associação só será horizontal quando os associados participarem efetivamente de todas as decisões e ações, desde o diagnóstico até a avaliação, passando pelo planejamento, execução, monitoramento, entre outras.

“Isso só se resolve com muita conversa e experimentação no dia a dia da associação. Não tem como resolver isso burocraticamente.”

Fiquei muito esperançoso em saber há algum tempo que nem todas as pessoas que trabalham com comunidades abandonaram a educação popular, idealizada por Paulo Freire há décadas, como algo do passado.

Segundo Cristhiane da Graça Amâncio em seu artigo “Educação Popular e Intervenção Comunitária: Contribuições para a reflexão sobre empoderamento”, quando falamos de participação social, valorização do conhecimento popular e alternativas pedagógicas que promovam a emancipação de sujeitos críticos, estamos tratando de educação popular: “O processo educativo com o grupo ou comunidade deverá ser construído em conjunto por todos os atores envolvidos partindo de sua realidade, como se relacionam com ela, suas necessidades, suas capacidades, porque não existe metodologias de desenvolvimento local e sim metodologias que possam apoiar a tomada de decisão, de reflexão e fortalecer os laços comunitários. Na perspectiva da educação popular, todo interventor assume um papel de fato educativo onde os sujeitos populares não são objetos de sua intervenção. Eles são enxergados como agentes de mudança tal como esse interventor.

“É preciso identificar grupos com interesses comuns, orientar a comunidade na identificação dos problemas e promover a organização inicial do grupo, que por conseguinte tem um papel totalmente ativo, diagnosticando e estabelecendo meios para solucionar os problemas bem como suas causas.”

O papel do mediador ou do educador, de acordo com Paulo Freire, será o de “dar força e jeito para que esses grupos populares transformem de fato o dia de amanhã”, tem o papel de instigador com uma contribuição fundamental a dar, estimulando a autoconfiança do grupo e dando-lhe subsídios para adquirir autonomia, conhecimento e consequentemente poder de contraposição. Círculos de reflexão vão propiciar que as pessoas se reúnam e reflitam coletivamente sobre seus problemas e suas histórias individuais permitindo que sejam tomadas decisões coletivas, uma postura coletiva. Devem levar à recuperação da autoestima para romperem com formas antigas de relação de dependência e terem consciência da capacidade que possuem de transformar sua realidade.

Em outra postagem, já disse que “Entendo que as associações têm três dimensões fundamentais:

“1. Comunitária: a associação é uma organização da comunidade, foi fundada porque a comunidade precisava dessa ferramenta para algumas de suas demandas. A associação precisa da organização comunitária para manter sua capacidade de atuação. Conversar com os velhos, descobrir e valorizar talentos, organizar grupos de trabalho, fazer diagnóstico e planejamento, monitorar e avaliar juntos, atingir os objetivos a que se propôs é o que vai manter e fortalecer a razão da sua existência. É na comunidade que está a sua missão.

“2. Política: Fortalecer a articulação e a mobilização da comunidade, lutar por seus direitos, reivindicar e participar do controle social de políticas públicas, fortalecer a sua articulação com organizações similares,
contribuindo para o movimento regional, nacional ou internacional é contribuir para a construção de uma cidadania efetiva.

“3. Gerencial: Exigências legais cumpridas, procedimentos administrativos bem definidos, as boas práticas de gestão incorporadas e as rotinas administrativas e burocráticas fazendo parte do dia a dia da associação. Não deixando acumular e tornando-as rotineiras, essas tarefas exigirão menos tempo e esforço de uma só vez. Se associação é ferramenta de trabalho, é preciso que esteja ‘bem afiada e funcionando bem’ para que possa nos servir para o trabalho que necessitamos fazer.”

Se a dimensão comunitária tem sido bastante esquecida, a gerencial também tem sido muitas vezes negligenciada, apesar da captação de recursos através de projetos ser o foco privilegiado. Durante uma oficina sobre gestão de associações para dirigentes e lideranças comunitárias, ao falar sobre as exigências legais e as boas práticas de gestão, o técnico que trabalhava com eles me perguntou se eu não estava sendo “mais real do que o rei” e eu respondi que não, se não fizesse isso a associação poderia enfrentar sérias dificuldades.

Em outra oficina sobre gestão, para outra associação, que estava esperando a aprovação de um projeto enviado para um órgão governamental, ao tratar da contabilidade e envio de declarações e informações aos órgãos oficiais, me disseram que não tinham um contador contratado, recorreram algumas vezes para o envio da declaração de imposto de renda,  mas estavam devendo algumas e tinham multas para pagar; nunca tinham feito a escrituração fiscal, nem cumprido com as demais obrigações, cadastro na Caixa Econômica Federal acreditavam que nem tinham. Tive que dizer para eles que, se o projeto que haviam enviado com muito esforço e contribuição de várias organizações parceiras fosse aprovado não conseguiriam assinar o contrato porque não teriam nenhuma das Certidões Negativas de Débito para apresentar, conforme eles sabiam que seria exigido. Disse que “era como se abrissem uma nova área para roça, destocassem, limpassem e, na hora de plantar descobrissem que a enxada estava sem cabo, não poderiam plantar e ficariam sem comida pelo próximo ano.” O presidente da associação completou: “E o pior, é que nem dá para tirar um cabo no mato. É preciso ser feito por um marceneiro especializado na cidade.”

Eles saíram tão preocupados depois dessa conversa no final do dia que na manhã seguinte eu pedi desculpas pelas más notícias, mas não poderia deixar de dizer para eles o que precisava ser dito. Um dos dirigentes respondeu que eu não tinha que me desculpar, que foi importante eles saberem a real situação e como resolvê-la. Ficaram de verificar o valor das multas e dos honorários de um contador para solucionar as pendências para buscarem formas de captar os recursos necessários.

Entendo que não dar o devido valor e atenção a qualquer um desses aspectos e o paternalismo que leva muitos técnicos e suas organizações a “passar a mão na cabeça” das comunidades, elogiando tudo o que fazem, mesmo quando deixam de fazer coisas necessárias, não ajuda em nada no desenvolvimento comunitário e de suas organizações, nem no aprendizado e amadurecimento das pessoas em busca de sua autonomia. Pelo contrário, atrasa esse desenvolvimento. É um engano pensar que eles gostam de ser tratados como crianças ou incapazes de fazer melhor.

O desenvolvimento das comunidades, de suas associações e outros tipos de organização não é uma questão de milagre ou de mágica, mas de dedicação, compromisso, pessoas capacitadas e dispostas e estratégias adequadas, além dos recursos necessários. E dá tempo? Se não tiver pressa, dá!