É
preciso e está mais do que na hora de consultores, técnicos, suas organizações
públicas e privadas, além de financiadores se convencerem definitivamente disso.
Durante
uma entrevista rápida e informal a uma pessoa a quem fui entregar o meu
currículo, por indicação de uma amiga comum, foi comentado: “Ela me disse que
você faz até chover.” Achei isso lisonjeiro e um tanto engraçado. Respondi que
a nossa amiga era muito generosa comigo. Eu não faço milagres nem
mágicas. Apenas me dedico ao desenvolvimento comunitário e de suas organizações,
porque gosto muito desse trabalho, e procuro fazer o melhor consigo.
Ainda
hoje é frequentemente vendida a ideia para as comunidades de que se fundarem uma
associação receberão muito dinheiro de projetos. Já foi tratado em postagens
anteriores neste blog que “A
‘corrida do ouro’ se mostrou enganosa para a maioria das associações que foram
criadas para isso. Muitas delas nunca conseguiram ter um projeto aprovado e
outras tantas tiveram um ou dois e depois não mais. Ao mesmo tempo, sem
condições de pagar um contador, com pouca ou nenhuma habilidade para a gestão
financeira e administrativa e sem terem sido preparadas para isso pelos ‘seus
criadores’, as associações ficam inoperantes e na inadimplência. Isso sem falar
daquelas que, sem o devido preparo, assumiram projetos de grande porte, não
executaram corretamente as atividades e o orçamento e, impossibilitadas de
prestar contas ou tendo a mesma rejeitada pelo financiador, foram deixadas de
lado ou tiveram seus dirigentes responsabilizados judicialmente.”
Milagres
e mágicas também estão no imaginário de muitos técnicos: “A ideia
da associação como panaceia cria expectativas que vão muito além de suas
possibilidades. É como se uma associação tivesse vida própria e resolvesse por
si só os problemas sem depender daqueles que fazem parte dela. Uma das
motivações que já ouvi é que ‘a comunidade é desorganizada. Com a associação vai
se organizar melhor’”. Ora, a
organização comunitária é a base para a organização da associação. Se a
comunidade não está bem organizada é preciso que seja feito um trabalho de
fortalecimento comunitário para que se organize melhor. Só depois disso é
possível pensar em fundar uma associação, se houver a necessidade de uma
organização formal para atingir os objetivos a que a comunidade se propõe. Caso
contrário, as fragilidades da organização comunitária se refletirão também na
associação.
Já ouvi também que “há conflitos e disputa de
liderança. Uma associação ajudará a resolver isso”. Sendo uma organização da comunidade, integrada e dirigida pelas mesmas
pessoas, os conflitos e disputas de poder irão para a associação também.
Poderão até mesmo ficar mais acirrados, uma vez que seus dirigentes terão um 'poder legal', conferido pela organização formal. Os conflitos poderão também
crescer na proporção da disponibilidade de recursos, que levam à distribuição
de benefícios, além da contratação de pessoas com salários ou ajuda de custo.
“Como técnico trabalhando com aquela comunidade sou muito demandado a
resolver problemas burocráticos ou políticos dela. São muito dependentes. Com
uma associação terão mais autonomia.” Respondi que
era um grande engano. Autonomia se conquista no dia a dia. Os técnicos têm o
grande papel de facilitar esse processo. Ir fazendo junto e cada vez mais ceder
espaço até que as capacidades necessárias sejam desenvolvidas e as pessoas
consigam fazer as coisas sozinhas. Esse trabalho educativo jamais será feito
“magicamente ou milagrosamente” pela simples criação de uma organização formal.
“O que
vai acontecer é que você vai arrumar mais demandas, para resolver as questões
burocráticas e outras da associação.”
Recentemente recebi a seguinte mensagem: “Olá, estamos
criando uma associação em minha comunidade e seu blog vem sendo de bastante
ajuda para a nossa discussão. Este ponto especificamente é um dos mais problemáticos,
tendo em vista que as organizações anteriores existentes por aqui fracassaram
pelo caráter centralizador dos presidentes e pela cultura dos associados de que
o presidente deve arcar com todas as obrigações da entidade.
Por essa razão, estamos propondo um modelo de administração horizontal, sem a figura do presidente (um Conselho Executivo com 11 membros). No entanto, embora não haja um impedimento legal para esse modelo, encontramos algumas dificuldades práticas, que vão das dúvidas em relação à representação institucional da entidade até à resistência do próprio cartório em realizar o registro de um estatuto que, ao invés de ser assinado por um presidente, é assinado por "Membros do Conselho Executivo". Enfim, em face dessas dificuldades, que soluções poderíamos adotar?”
Por essa razão, estamos propondo um modelo de administração horizontal, sem a figura do presidente (um Conselho Executivo com 11 membros). No entanto, embora não haja um impedimento legal para esse modelo, encontramos algumas dificuldades práticas, que vão das dúvidas em relação à representação institucional da entidade até à resistência do próprio cartório em realizar o registro de um estatuto que, ao invés de ser assinado por um presidente, é assinado por "Membros do Conselho Executivo". Enfim, em face dessas dificuldades, que soluções poderíamos adotar?”
Respondi que “Uma associação precisa ter um representante legal,
necessariamente UMA pessoa física. Nas associações que adotam um Conselho
Diretor ou Conselho Executivo, os membros do conselho elege entre si uma pessoa
que terá o título de presidente do conselho ou outro que se queira dar e este
assinará os documentos legais da associação, tanto diante dos órgãos
governamentais como contratos, convênios, etc. Não tem
como escapar disso.
“É
importante termos claro que uma associação só será horizontal quando os associados participarem efetivamente de todas as decisões e ações,
desde o diagnóstico até a avaliação, passando pelo planejamento, execução,
monitoramento, entre outras.
“Isso só
se resolve com muita conversa e experimentação no dia a dia da associação. Não
tem como resolver isso burocraticamente.”
Fiquei
muito esperançoso em saber há algum tempo que nem todas as pessoas que
trabalham com comunidades abandonaram a educação popular, idealizada por Paulo
Freire há décadas, como algo do passado.
Segundo Cristhiane da Graça Amâncio em seu
artigo “Educação Popular e Intervenção Comunitária: Contribuições para a
reflexão sobre empoderamento”, quando falamos de participação social,
valorização do conhecimento popular e alternativas pedagógicas que promovam a
emancipação de sujeitos críticos, estamos tratando de educação popular: “O processo
educativo com o grupo ou comunidade deverá ser construído em conjunto por todos
os atores envolvidos partindo de sua realidade, como se relacionam com ela,
suas necessidades, suas capacidades, porque não existe metodologias de
desenvolvimento local e sim metodologias que possam apoiar a tomada de decisão,
de reflexão e fortalecer os laços comunitários. Na perspectiva da educação
popular, todo interventor assume um papel de fato educativo onde os sujeitos
populares não são objetos de sua intervenção. Eles são enxergados como agentes
de mudança tal como esse interventor.
“É preciso identificar grupos com interesses comuns,
orientar a comunidade na identificação dos problemas e promover a organização
inicial do grupo, que por conseguinte tem um papel totalmente ativo,
diagnosticando e estabelecendo meios para solucionar os problemas bem como suas
causas.”
O papel do mediador ou do educador, de acordo com Paulo
Freire, será o de “dar força e jeito
para que esses grupos populares transformem de fato o dia de amanhã”, tem
o papel de instigador com uma contribuição fundamental a dar, estimulando a
autoconfiança do grupo e dando-lhe subsídios para adquirir autonomia,
conhecimento e consequentemente poder de contraposição. Círculos de
reflexão vão propiciar que as pessoas se reúnam e reflitam coletivamente
sobre seus problemas e suas histórias individuais permitindo que sejam tomadas
decisões coletivas, uma postura coletiva. Devem levar à recuperação da
autoestima para romperem com formas antigas de relação de dependência e
terem consciência da capacidade que possuem de transformar sua realidade.
Em outra postagem, já disse que “Entendo que as associações têm três
dimensões fundamentais:
“1.
Comunitária: a associação é uma
organização da comunidade, foi fundada porque a comunidade precisava dessa
ferramenta para algumas de suas demandas. A associação precisa da organização
comunitária para manter sua capacidade de atuação. Conversar com os velhos, descobrir e
valorizar talentos, organizar grupos de trabalho, fazer diagnóstico e
planejamento, monitorar e avaliar juntos, atingir
os objetivos a que se propôs é o que vai manter e fortalecer a razão da sua
existência. É na comunidade que está a sua missão.
“2. Política: Fortalecer a articulação e a mobilização da comunidade, lutar por seus direitos, reivindicar e participar do controle social de políticas públicas, fortalecer a sua articulação com organizações similares, contribuindo para o movimento regional, nacional ou internacional é contribuir para a construção de uma cidadania efetiva.
“2. Política: Fortalecer a articulação e a mobilização da comunidade, lutar por seus direitos, reivindicar e participar do controle social de políticas públicas, fortalecer a sua articulação com organizações similares, contribuindo para o movimento regional, nacional ou internacional é contribuir para a construção de uma cidadania efetiva.
“3.
Gerencial: Exigências legais
cumpridas, procedimentos administrativos bem definidos, as boas práticas de
gestão incorporadas e as rotinas administrativas e burocráticas fazendo parte
do dia a dia da associação. Não deixando acumular e tornando-as rotineiras,
essas tarefas exigirão menos tempo e esforço de uma só vez. Se associação é ferramenta de
trabalho, é preciso que esteja ‘bem afiada e funcionando bem’ para que possa
nos servir para o trabalho que necessitamos fazer.”
Se a
dimensão comunitária tem sido bastante esquecida, a gerencial também tem sido
muitas vezes negligenciada, apesar da captação de recursos através de projetos
ser o foco privilegiado. Durante uma oficina sobre gestão de associações para
dirigentes e lideranças comunitárias, ao falar sobre as exigências legais e as
boas práticas de gestão, o técnico que trabalhava com eles me perguntou se eu
não estava sendo “mais real do que o rei” e eu respondi que não, se não fizesse
isso a associação poderia enfrentar sérias dificuldades.
Em
outra oficina sobre gestão, para outra associação, que estava esperando a
aprovação de um projeto enviado para um órgão governamental, ao tratar da
contabilidade e envio de declarações e informações aos órgãos oficiais, me
disseram que não tinham um contador contratado, recorreram algumas vezes para o
envio da declaração de imposto de renda,
mas estavam devendo algumas e tinham multas para pagar; nunca tinham
feito a escrituração fiscal, nem cumprido com as demais obrigações, cadastro na
Caixa Econômica Federal acreditavam que nem tinham. Tive que dizer para eles
que, se o projeto que haviam enviado com muito esforço e contribuição de várias
organizações parceiras fosse aprovado não conseguiriam assinar o contrato
porque não teriam nenhuma das Certidões Negativas de Débito para apresentar,
conforme eles sabiam que seria exigido. Disse que “era como se abrissem uma nova área
para roça, destocassem, limpassem e, na hora de plantar descobrissem que a
enxada estava sem cabo, não poderiam plantar e ficariam sem comida pelo próximo
ano.” O presidente da associação completou: “E o pior, é que nem dá para tirar
um cabo no mato. É preciso ser feito por um marceneiro especializado na cidade.”
Eles
saíram tão preocupados depois dessa conversa no final do dia que na manhã
seguinte eu pedi desculpas pelas más notícias, mas não poderia deixar de dizer
para eles o que precisava ser dito. Um dos dirigentes respondeu que eu não
tinha que me desculpar, que foi importante eles saberem a real situação e como
resolvê-la. Ficaram de verificar o valor das multas e dos honorários de um
contador para solucionar as pendências para buscarem formas de captar os
recursos necessários.
Entendo
que não dar o devido valor e atenção a qualquer um desses aspectos e o paternalismo que leva muitos técnicos e suas organizações a “passar a mão
na cabeça” das comunidades, elogiando tudo o que fazem, mesmo quando deixam de
fazer coisas necessárias, não ajuda em nada no desenvolvimento comunitário e de
suas organizações, nem no aprendizado e amadurecimento das pessoas em busca de
sua autonomia. Pelo contrário, atrasa esse desenvolvimento. É um engano pensar
que eles gostam de ser tratados como crianças ou incapazes de fazer melhor.